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19/08/2019 às 14h31min - Atualizada em 19/08/2019 às 14h31min

Cora vive na memória das pessoas, nos seus versos e na casa que nunca deixou de ser dela na cidade de Goiás

O museu dedicado à poetisa leva o visitante de volta ao tempo que ela ali morava, cozinhava, conversava e escrevia.

Quem se interessa pela obra e vida de Cora Coralina logo percebe que, na cidade de Goiás, é como se ela ainda vivesse de alguma forma. Ela completaria 130 anos nesta terça-feira (20), quando acontecem várias homenagens à poetisa (veja aqui a programação). Sem dúvida, ela está na memória das pessoas, no ar e, claro, nos versos que ela deixou.
A principal responsável por manter a história dela viva é a Associação Casa de Cora Coralina (ACCC), que administra e mantém o museu de mesmo nome. Ele funciona na “casa da ponte”, que sempre foi da família da poetisa e onde ela viveu todos os 30 anos que morou em Goiás – um pouco na infância e muito na velhice.
À frente de tudo está uma pessoa que pode se considerar pupila de Cora: Marlene Vellasco. Professora aposentada e coordenadora do local, ela fala da poetisa como uma neta fala de uma avó por quem tem profunda admiração, carinho e respeito.
“Para mim é um orgulho poder ser a pessoa que faz isso. Eu vivo ela 24 horas por dia. Passo mais tempo aqui [no museu] do que em qualquer outro lugar. É uma honra para mim ter convivido tanto com ela. Ela me ensinou tanto. A gente conversava muito”, lembrou.
Em cada centímetro da casa tem uma parte da poetisa, e o museu foi planejado para passar o máximo dela para os visitantes.
"Ela inspirava pelo jeito de ser. Os poemas traduziam quem ela era, como ela era: muito à frente do seu tempo mesmo”, contou.
Marlene disse que um dos objetivos do museu é manter a casa como ela é, e dar continuidade ao legado da Cora: incentivando a leitura, ensinando pelo exemplo de humildade, superação, força feminina e valorização do trabalho, entre tantas outras características que a faziam a referência que é até hoje.
Entre esses traços da Cora, um que chama a atenção e que permeia muitos dos versos dela é a empatia e identidade que ela cria com as pessoas "invisíveis". Em um tempo cheio de machismo e preconceito, ela falava de prostitutas com se fossem suas irmãs. Acolhia a andarilha Maria Grampina e o jardineiro Seu Vicente.
"Mulher da Vida,
Minha irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e ápodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à toa.
Mulher da vida,
Minha irmã"

Quem conviveu com ela se lembra que Maria Grampina passou a morar nos fundos da casa da Cora, mas “não dormia lá em cima no quarto porque não queria, não foi por falta da Cora chamar”, lembrou Marlene.
“Você pode reparar. Nos poemas dela, ela não exaltava os grandes homens do estado. Eram os marginalizados, os esquecidos. Ela dava voz a quem não tinha. Talvez pela sensibilidade, humildade e por ser de uma geração entre a escravatura e a república, ela tinha muito essa visão social”, completou.
Mais uma prova é que, num tempo em que as mulheres eram ainda vistas ainda menos como figuras fortes, independente e empoderadas, Cora falava, às vezes, como uma feminista. “Escrevia versos e era sofisticada. / Você teve medo. / O medo que todo homem sente / da mulher letrada”, afirmou em um dos seus poemas.
Outro tema recorrente na vida, no dia a dia e, consequentemente, nos versos da poetisa era o valor ao trabalho. Cora foi vendedora de tecidos, vendedora de flores, e doceira. Sempre ativa, ela dizia que não conseguir trabalhar deveria ser uma das maiores frustrações de um homem, como lembrou Marlene.
Outra lembrança vívida na memória de Marlene é a forma como ela fazia tudo: com muito zelo e carinho. No caso dos doces, por exemplo, não era incomum haver doceiras na cidade, mas os dela eram especiais.
“A maioria das pessoas vendia doces em calda, mas ela fazia cristalizados. Assim, ela conseguia colocar vários em uma caixinha, fechava tudo com muito cuidado e colocava um laço de fita. Com ela era sempre assim. E ela vendia tudo aqui na porta mesmo da casa dela. Daí aproveitava que as pessoas vinham comprar os doces, e oferecia os livros”, contou Marlene.
Talvez toda a dedicação venha também de uma visão positiva, esperançosa da vida. A pupila de Cora recorda-se de uma “avó” que sempre falava das dificuldades como “pedras”, mas as encarava como oportunidade de aprender.
“Não tem na obra dela palavras negativas, de derrota. Ela sempre falava de superação das dificuldades. Como ela dizia ‘quebrando pedras e plantando flores’”, disse.
Marlene acredita que, se ainda estivesse viva, Cora se daria muito bem nos dias de hoje, porque era muito moderna, sempre querendo se atualizar.
“Ela teria tudo: blog, redes sociais. Era muito antenada”, brincou.
Até mesmo por isso, o Museu tenta se manter atual, sem perder a essência, claro. Há cerca de dois anos eles começaram a receber ajuda de professores e estudantes da Universidade Federal de Goiás (UFG) para modernizar o espaço.
“Eles criaram essa linha do tempo em que você pode ver os acontecimentos importantes da vida dela, e a poesia em todas as formas: projeções no vapor, representando o ar, na bica, que é a água, e nas paredes. Nosso próximo desafio é o cheiro”, revelou.
Na casa estão expostos manuscritos quase centenários e fotografias históricas ao lado de projeções digitais e espaços interativos. O passeio começa pela antiga sala da casa, preservada com os mesmos móveis da época, passando pela cozinha, quintal e quarto da poetisa. Também no museu, há um espaço no enorme quintal em que os poemas dela são sussurrados pelas árvores. Basta ficar ali para ouvir os versos, se aproximando da realidade dela, que dizia “conversar com formiguinhas” naquele mesmo ambiente.
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera
das obscuras!

Museu Casa de Cora Coralina
Aberto de terça a sábado entre 9h e 16h45; aos domingos e feriados entre 9h e 13h
Endereço: Rua Dom Cândido, nº 20, Centro - cidade de Goiás
 
Fonte: G1Goiás
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